terça-feira, 10 de março de 2009

A PERSPECTIVA FEMINISTA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS



Por: Julia Camargo. Professora do curso de RI da UFRR.

Em 8 de março de 1857, em Nova Iorque, 129 operárias morreram queimadas em uma ação da polícia local para conter uma manifestação em uma fábrica de tecidos. Essas mulheres estavam protestando pela redução da jornada de trabalho de 14 para 10 horas diárias e pelo direito à licença-maternidade. Em 1975, por meio de um decreto, a ONU oficializou nesse dia o “Dia Internacional da Mulher” e desde então comemoramos as conquistas e, mais que isso, refletimos sobre o papel da mulher e suas condições na sociedade atual. Aproveitando o ensejo dessa data especial, o presente texto busca refletir sobre as contribuições feministas ao estudo das Relações Internacionais.
O pensar sobre a condição feminina nas RI nem sempre teve um espaço digno nas disciplinas teóricas da área. Comparada às outras Ciências Humanas, as perspectivas feministas emergiram nas RI em um período relativamente tardio. Ao questionar o porquê desse atraso, Halliday (Repensando as Relações Internacionais, 1999) aponta que os estudiosos das RI tenderam a ver o gênero como um problema intranacional e não internacional, resumidamente, como uma questão irrelevante para os assuntos da política mundial. Assim, a área de RI, por muito tempo, foi vista como um espaço de “gênero neutro”. As abordagens feministas somente ganharam lugar nas RI há pouco mais de uma década e é possível observar dois movimentos que galgaram a esse engendramento: um sistêmico e outro que chamaremos de prático.
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No campo sistêmico, o fim da Guerra Fria e a diluição das fronteiras nacionais com o fenômeno da globalização, possibilitaram que temáticas diversas passassem a fazer parte da agenda internacional. Obedecendo à premissa de que as RI não se resumem à dinâmica dos Estados e considerando o jogo de dois níveis de Putnam (Diplomacy and domestic politics: the logic of two-level games), no qual tudo aquilo que acontece no cenário internacional exerce influência no cenário interno dos Estados e vice e versa, o papel da mulher e da perspectiva feminista começaram a despontar na agenda dos estudos teóricos das RI.
Contudo, foi o campo prático (de práticas deploráveis) de abusos aos Direitos Humanos que definitivamente ancorou o papel da mulher nos estudos das RI. Quando a opinião pública e a mídia internacional denunciaram os estupros de mulheres se tornando uma ação freqüente de limpeza étnica em algumas guerras da década de 1990, como a da Bósnia, a disciplina de RI não teve mais como descartar a importância do gênero na política mundial, afinal “as mulheres se tornaram alvo de limpeza étnica não por serem de um grupo étnico ou tribal diferente, mas sim por serem o que são, mulheres”.(MESSARI; NOGUEIRA; Teoria das Relações Internacionais, 2005)
A perspectiva feminista das RI, de uma maneira geral, seguiu a tradicional premissa formulada pelas feministas de outras áreas: a subordinação da mulher ou a injusta assimetria entre mulheres e homens em aspectos sociais, políticos e econômicos. Assim, os primeiros questionamentos dos teóricos e das teóricas feministas foram: onde estão as mulheres nas RI? Existe alguma diferença para o processo de tomada de decisão dos Estados se as políticas são conduzidas por um homem ou uma mulher?
Influenciadas pelas perspectivas pós-modernas, com o passar do tempo, essa corrente teórica ampliou seu espectro e absorveu outros temas comumente negligenciados nos estudos da política mundial. Assim, a teoria feminista passou a investigar como o sistema internacional e a economia global contribuíram para a subordinação da mulher e outros grupos marginalizados e como esse mesmo sistema causou constrangimento e deficiência na área da segurança humana de grupos.
Deve-se considerar que, igualmente à teoria construtivista, a teoria feminista das RI possui uma gama de nuances e seus autores e autoras, que muitas vezes discordam entre si, abordam temas variados sob perspectivas, instrumentos analíticos, epistemologia e metodologia diversificadas. Portanto, pode-se falar na existência de feministas liberais, marxistas, pós-modernas, construtivistas, críticas. Se por um lado, essa ausência de uma agenda de pesquisa comum é considerada por alguns acadêmicos como uma fragilidade da teoria feminista, por outro, justamente por não possuir um arcabouço de princípios fechados é que essa perspectiva teórica tornou-se uma ferramenta analítica rica e multifacetada, a qual permite o acesso a diferentes realidades da sociedade internacional.
Mesmo com essa diversidade de temáticas, existe pontos em comum compartilhados pelas propostas feministas das RI. Os autores concordam que a preocupação central da corrente está em pesquisar e demonstrar como a vida de pessoas marginalizadas é posicionada em termos de raça, classe, cultura e, claro, gênero. A investigação se concentra em delinear como a política global exerce impacto sobre esses indivíduos e suas identidades e como os elementos de constrangimentos foram construídos por meio de discursos, regras e normas no tempo histórico. Hoje, observa-se pesquisas feministas trabalhando com temas diversos que afetam as RI, como por exemplo: governança global, economia internacional, tráfico de pessoas, construção de identidade, formação de discursos, etc.
De tal forma, a principal contribuição da teoria feminista das RI foi oferecer um espaço de diálogo sobre as condições humanas negligenciadas na área até então. Vozes que raramente foram ouvidas passaram a fazer parte da agenda internacional e políticas públicas internacionais começaram a agir em prol desses indivíduos. Um exemplo de uma dessas ações foi a Conferência de Beijing proposta pela ONU, em 1995, que discutiu os direitos da mulher.
Atualmente, o poder feminino nas RI está repleto de ações. O movimento das Mães da Praça de Maio na Argentina; OINGs lideradas por mulheres que lutam contra as práticas de mutilação feminina na África ou que lutam pelo direito à educação escolar de meninas no Afeganistão; formação de tropas de peacekeeping pela ONU, composta somente por mulheres para atuar em regiões onde abusos foram relatados; e a cada vez mais visível, porém ainda insatisfatória, ascensão de mulheres em postos de tomada de decisão relevantes para a configuração da política internacional. Por fim, dentro de suas limitações, a teoria feminista das RI é um convite para pensar um mundo mais democrático, includente, construído em instituições onde o gênero não representa um sistema de opressão histórico. São objetivos como esses, baseados em princípios de paz e justiça, que têm motivado a disciplina de Relações Internacionais desde a sua criação. O papel da mulher na construção desse mundo não deve ser negligenciado.
FELIZ DIA INTERNACIONAL DA MULHER!!!!
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Leitura recomendada: TICKNER, J Ann. Gendering World Politcs. New York, Columbia University Press, 2001.